quarta-feira, dezembro 01, 2004

Cosmopolitas de sofá

Cosmopolitas de sofá

por Miguel Poiares Maduro







Diz-se que Salazar teve um grande amor. Chamava-se Christine Garnier, uma jornalista francesa que veio a Lisboa para entrevistar Salazar e acabou por passar um verão na sua companhia. Ao que parece, Salazar ter-lhe-á depois enviado vários e luxuosos presentes (afinal era capaz de gastar dinheiro…) e mantido uma correspondência romântica que, no entanto, nunca passou do amor platónico. Se calhar o amor à pátria não era compatível com o amor por uma mulher…

Do verão que Christine Garnier passou com Salazar nasceu um livro escrito pela jornalista: "As minhas férias com Salazar". Nesse livro, Garnier conta como ficou surpreendida com o conhecimento e actualização de Salazar quanto ao que se passava no mundo. Aí estava um ditador que não saia de Portugal mas tinha lido tudo, encontrando-se a par dos mais recentes debates intelectuais. Salazar parecia um cosmopolita e, no entanto, todos sabemos que a marca que nos deixou foi de provincianismo. Como é possível que um homem intelectualmente tão informado fosse tão provinciano? Salazar julgava poder conhecer o mundo sem sair da sua famosa cadeira. Era um cosmopolita de sofá.

Salazar queria conhecer o mundo mas sem estar disposto a abraçá-lo. A curiosidade intelectual de Salazar nunca se estendeu aos seus próprios preconceitos e pré-compreensões. Ele conhecia tudo mas não aceitava ser desafiado por nada. Quando o conhecimento tem lugar de forma acrítica ou promove a submissão ou reforça a presunção e arrogância. Em vez de nos desafiar e melhorar torna-se meramente instrumental ao reforço das nossas crenças anteriores. Quer promove o nosso cinismo (partimos para o conhecimento do que é diferente apenas para provar o que tem de mau), quer sustenta a nossa falsa autoridade (levando-nos a presumir que sabemos tudo).

Os verdadeiros cosmopolitas não querem apenas conhecer o mundo, querem interagir com ele. Portugal, ao contrário, tem uma longa tradição de cosmopolitas de sofá. Uma das nossas marcas é precisamente a de unir cosmopolitismo com provincianismo. Isto manifesta-se, no entanto, de duas formas totalmente opostas.

Uma forma de provincianismo cosmopolita exprime-se no fascínio por tudo o que é estrangeiro. Se há algo que boa parte das nossas elites intelectuais e empresariais partilham é a concentração na actividade de importação: uns importam conceitos de negócios, outros importam teorias e ideias. O nosso discurso intelectual parece muitas vezes reduzido ao franchising de ideias (em que os principais fornecedores tanto podem ser o Le Monde como a New Yorker…). A isto junta-se a obsessão com o que os outros pensam de nós. Seja uma equipe de futebol ou um politico não há visita ao estrangeiro que não seja acompanhada por um artigo nos jornais sobre o que eles (os estrangeiros) dizem e pensam de nós. Isto até seria positivo se através da nossa imagem nos outros procurássemos saber algo mais sobre nós. Na verdade, lemos os outros apenas para saber o que julgam de nós… È um pouco como aquele amante que se apaixona não para amar mas apenas para ser amado.

Mas há outra forma, igualmente comum e, no entanto, totalmente oposta, de provincianismo cosmopolita. É a recusa a tudo o que vem de fora. O conhecimento do mundo serve apenas para nos ameaçar. As ideias dos outros valem quando são importadas por nós mas os outros não valem nada. Neste caso a autoridade do cosmopolita de sofá serve apenas para proteger a sua exclusividade: o ser detentor de toda a verdade. Eis o "cosmopolita" Salazar: o conhecimento do mundo apenas servia para lhe dar razão ao "proteger-nos" dele. Neste caso, é como o amante que se apaixona apenas à procura da fidelidade.

O nosso equívoco é pensarmos que somos um país aberto ao mundo só porque somos um país de viajantes. Não basta viajar para interagir com o mundo. Há muita gente que viaja e não sai do seu "sofá". Vicente Verdu dizia que havia dois tipos de viajantes: os que viajam para viajar e os que viajam para ter viajado. Os primeiros querem usufruir dos lugares e da viagem. Os segundos procuram histórias para contar. Mas há um terceiro tipo: os que viajam sem querer sair do seu lugar. Os que chegam ao hotel e ficam no quarto a ver a CNN e a ler o Financial Times. Do tipo daqueles portugueses que vão a uma cidade estrangeira e procuram logo um restaurante português para comer. O simples facto de viajarmos não nos faz estar atentos ao mundo e interagir com ele.

O verdadeiro cosmopolita é aquele que se deixa desafiar pelo mundo. Que aceita confrontar-se com outras realidades e ideias sem as querer imediatamente copiar ou rejeitar. Aquele que quer ser um participante do mundo e não um mero espectador. Alguém que sabe que é confrontando-se com a diferença que constrói a sua verdadeira identidade.





Veja também, do mesmo autor, "Confusão ideológica" sobre a distinção direita/esquerda, publicado nos Textos do DOTeCOMe

2 comentários:

Nic disse...

Excelente texto, parabens!
Nao que me considerasse cosmolitano, mas vejo-me na ultima frase do teu texto.
posso guarda'-la?

Nic disse...

no meu comentario anterior leia-se "cosmopolita"