Políticas acidentais
por Miguel Poiares Maduro
Bismark disse que para continuarmos a respeitar as salsichas e as leis não devemos ver como são feitas. Nunca gostei muito de salsichas mas quanto às leis é difícil fazer dieta… Elas estão em todo o lado. Existe um sério problema de obesidade legislativa. Quando não temos solução para um problema legislamos. As leis parecem apresentar desejos em vez de soluções. O homem sonha e logo legisla, arriscando-se a transformar as leis em meras intenções. Multiplicamos as leis sem chegarmos a soluções. Mas de onde vem, afinal, este existencialismo legislativo? Ele tem origem numa crise existencial da própria política.
À política caberia tradicionalmente a decisão sobre certos riscos sociais, a distribuição dos seus custos e benefícios e a arbitragem entre os diferentes interesses a eles associados. Hoje em dia, a política tem dificuldades em desempenhar estas funções. A verdadeira política tirou férias: a ênfase é toda colocada na arte de fazer política, esquecendo as políticas que deviam ser a sua razão de ser. A estética da política (não confundir com a estética dos políticos) interessa mais que as próprias políticas. Neste contexto, não é de estranhar que as políticas pareçam, por vezes, um resultado acidental da política.
Isto é visível, desde logo, na forma como se reduzem certas questões políticas a escolhas técnicas. Depois do tanto que ouvi de tantos lados, confesso que já não sei o que pensar do futuro aeroporto de Lisboa, do TGV ou de como reciclar os nossos resíduos tóxicos. E, no entanto, a forma como estas questões nos são apresentadas indiciaria uma decisão fácil. O discurso sobre estas e outras políticas está dominado pela invocação da técnica e da ciência. Ambos os lados parecem estudantes aplicados, esgrimindo estudos técnicos, planos de impacto, projectos de viabilidade e outras expressões enjoativas. Por vezes, não sei se assisto a um debate político ou a um exame de engenharia. Parece que não se trata de fazer opções políticas mas de determinar o que é verdade ou mentira. As políticas são apresentadas como o resultado de uma decisão técnica, mas parece que a técnica está mais confundida que a política.
Só que se o problema fosse meramente técnico a opção política seria simples: confiar nos melhores técnicos. Mas o problema é outro: é que já não conseguimos distinguir entre o que pertence à técnica e o que pertence à política. Não sabemos se foi a ciência que tomou conta da política ou se é a política que se esconde atrás da ciência. A ciência é fundamental para esclarecer e iluminar a escolha política mas não se pode é reduzir a política a uma questão de ciência. Por ex.: a ciência pode e deve ajudar-nos a determinar o risco existente num certo método de reciclagem de resíduos tóxicos mas essa não é a questão política. As perguntas, a resolver politicamente, são outras: é esse risco socialmente aceitável face às alternativas existentes e aos riscos que também comportam? Como deve ser esse risco distribuído na sociedade (quem o deve comportar e como deve ser compensado por isso)? A política tem de partir dos factos mas não pode ser reduzida a um juízo de facto (o que é verdade ou mentira). A política, como a vida, é antes um processo de escolha entre diferentes alternativas imperfeitas.
Falta também visão periférica às políticas. Em parte isto deve-se a uma "ghetização" do discurso político, organizado em torno de grupos que prosseguem objectivos específicos. Cada um destes grupos identifica o interesse geral com o interesse que entendem ser prioritário proteger. Num contexto deste tipo, o verdadeiro interesse geral devia resultar do equilíbrio entre estes diferentes interesses parcelares. À política deveria caber promover um debate entre todos e arbitrar entre eles. Mas não é bem assim. Em primeiro lugar, devido à crescente complexidade social e, logo, das decisões políticas, a segregação do discurso político tem-se reflectido numa segregação das próprias políticas. Criam-se diferentes instituições (comités, institutos, agências) a que se atribuem certos objectivos específicos. Naturalmente, estas instituições centram a sua acção na maximização desses objectivos. O mesmo sucede, crescentemente, com diferentes áreas de governo: moldados por diferentes objectivos e com conhecimentos compartimentados, é natural que, por ex., o Ministério do ambiente tenha uma cultura do interesse público bem diferente da do Ministério da economia. Quando a política já não consegue coordenar e arbitrar estes diferentes poderes, as políticas entram num ciclo de constante alternância consoante aqueles que são chamados a controlá-las. Em vez das políticas representarem uma escolha entre diferentes alternativas imperfeitas à luz dos vários interesses em causa elas são, alternativamente, dominadas por vários interesses parcelares. Por vezes, isto tem como consequência uma enorme instabilidade legislativa e política. Outras vezes, um desses interesses consegue estabilizar o seu domínio numa certa área e o problema é o oposto: um congelamento da democracia, em que a transformação de certos interesses predominantes em direitos adquiridos impede a reforma de políticas que, mesmo que inicialmente o tenham sido, há muito deixaram de ser eficientes e justas.
No fundo, subjacente à dificuldade de assumir a política como escolha encontra-se um enorme mito: a presunção de que os recursos do Estado não são escassos. Muitas vezes, as reivindicações que se ouvem em Portugal parecem entender que prosseguir um certa política é apenas uma questão de vontade e não exige uma opção entre diferentes utilizações possíveis dos mesmos recursos limitados. Fala-se muito de justiça distributiva mas ignoram-se os efeitos redistributivos da maior parte das políticas. Fornecer o acesso universal a um certo serviço (a educação por exemplo) pode parecer incontestavelmente desejável. Mas o que temos verdadeiramente de decidir é se preferível utilizar certos recursos do Estado para garantir um acesso gratuito a todos independentemente do seu estatuto económico ou se existe uma alternativa melhor para utilizar e distribuir esses recursos.
Uma política perfeita é um pouco como a felicidade, toda a gente diz que a viu e que anda por aí mas ninguém sabe onde mora. É bom ter a ambição de buscar a perfeição mas não de viver obcecado com ela. Na política como no resto, o que conta são as escolhas que se fazem e não aquelas que gostaríamos de poder fazer. As políticas são acidentais quando as escolhemos sem ter consciência dos limites da nossa escolha.
Políticas acidentais
por Miguel Poiares Maduro
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