quarta-feira, agosto 17, 2005

Prisioneiros do Futuro



Prisioneiros do Futuro
por Miguel Poiares Maduro

Há dias foi anunciado que Portugal apenas atingirá o nível económico médio europeu dentro de 110 anos.

Não sei qual é a base para uma tal previsão mas anunciada assim parece ridícula. Em 110 anos, o mundo e Portugal podem sofrer as maiores transformações pelo que sabemos, até podemos ser invadidos por extraterrestres que percebam de economia ou vir a ter uma geração clonada a partir de uma qualquer célula do António Dâmaso! As circunstâncias que podem afectar o crescimento económico da Europa e de Portugal são tantas que uma previsão deste tipo e a tal distância não faz sentido (é provável até que o estudo assente na presunção de que "tudo se manterá como está" e, nessa medida, a sua conclusão é apenas uma análise crítica do nosso actual modelo de crescimento económico).

Sempre me impressionou esta importância que atribuímos à previsão do futuro. Queremos antecipar o nosso destino. Só que conhecer o que o destino nos reserva pressupõe que o nosso destino já está reservado. E é aqui que está o problema querer conhecer o futuro é negar que somos nós que o determinamos. É deixar-se conduzir em vez de tentar conduzir um pouco. Como é que se pode prever a nossa evolução económica para os próximos 110 anos?

Só presumindo que somos prisioneiros de nós próprios e que não podemos mudar. Isto é a negação da nossa própria humanidade e da liberdade que lhe é inerente. Mesmo para quem não é católico, o episódio do pecado original é belíssimo a esse respeito. Porque teria Deus permitido a Adão e Eva que pecassem e porque teriam eles vontade de pecar estando no paraíso? Só encontro uma explicação o acto de rebeldia permitido por Deus é o reconhecimento da liberdade humana. Mas ao libertarem-se, Adão e Eva deixam de estar protegidos no paraíso e passam a ser responsáveis pelo seu destino. São eles e não Deus que o determina. Deus pode julgar mas não escolhe.

Sendo assim, é absurda a importância que na nossa sociedade adquiriu a noção de destino e toda uma indústria de previsões do futuro. Não existindo um futuro pre-determinado, acreditar no destino é acreditar naqueles que nos lêem o destino (escrito nos astros, nas cartas ou até nas borras de café).

Ao acreditarmos nessas previsões ficamos prisioneiros de quem as faz. Tornamo-nos os seus executantes. Nunca demonstraremos que são falsas porque nós mesmos garantimos, através da nossa obediência, a sua concretização.

Admito, por exemplo, que a colocação dos astros quando nascemos até possa determinar alguns tratos da nossa personalidade (há tantas coisas que podem influenciar o que somos, desde os genes que temos à cara da enfermeira que vimos quando nascemos…). Mas não consigo compreender como se passa da influência dos astros na nossa personalidade à previsão de acontecimentos específicos.

Será que de uma concentração de "Balanças" se deve esperar uma grave perturbação pública ou que o facto de o Sporting ter 11 Capricórnios a jogar garante a vitória no campeonato nacional? Por que motivo hão-de os astros permitir prever certos acontecimentos? Não será que a nossa ansiedade em saber o que o futuro nos reserva é antes um escape para o que sentimos ser a nossa impotência em lidar com ele?

A nossa descrença num futuro aberto resulta da nossa dificuldade em saber o que fazer com esse futuro. Não é que nos falte vontade de ter a liberdade de determinar o futuro. Falta-nos é a vontade de escolher o que essa liberdade implica. É que o insucesso resultante da não decisão pode ser atribuído ao destino ao que nos aconteceu ou estava reservado. O insucesso resultante de uma nossa decisão é antes visto como sendo da nossa responsabilidade: "foste tu que fizeste isso a ti próprio!". Daqui resulta uma enorme tendência para imobilidade perante a vida e o destino.

Quem nada faz e é infeliz tem a pena de todos era esse o seu destino. Quem tenta mudar o seu destino é um aventureiro. Socialmente, somos induzidos à inércia. Daí que até a mudança, para ocorrer, tenha por vezes de ser promovida pela antecipação de um destino diferente. Essa é também uma razão para o recurso aos astros e a outras "ordens do futuro": procurar uma responsabilização alternativa ("os astros são quem mais ordena"). Mas essa é apenas uma outra forma de perder a liberdade.

Em Portugal, o futuro é mais irreversível do que a História. Perante a História adoptamos muitas mais liberdades. Paradoxalmente, achamo-nos donos da História e escravos do destino. Mudamos a História de acordo com a nossa necessidade de justificar ou legitimar diferentes opiniões ou sentimentos. É que a História, ao contrário do futuro, não é vista como sendo da nossa responsabilidade e até serve para nos demitir de responsabilidades ("foi sempre assim").

Frequentemente, a História muda não porque muda o nosso conhecimento dela mas sim porque mudam as nossas necessidades quanto ao que concluir com base nela. É curioso como em Portugal uma pessoa teimosa, ortodoxa, fundamentalista, passa, após a morte, a ser definida como coerente, íntegra, corajosa. Não há nada como a morte para mudar a história de uma vida. A História não muda, mas o que muda é a nossa história da História.

Exercemos a nossa liberdade na forma como contamos diferentes Histórias da nossa História. É que a História é uma construção da memória e, como tal, sugestionável. É mais fácil reescrever a História do que escrever o futuro. E quanto mais distante a História mais fácil é de nos apropriarmos dela. Ninguém pode lá voltar para controlar a nossa versão.

Não temos medo de manipular a História mas temos um enorme receio de tomar conta do destino. Exercemos a nossa liberdade para justificar onde estamos mas não para determinar onde vamos. E, no entanto, só há uma coisa certa no nosso destino a morte. E mesmo essa, se puder, evito-a.


por Miguel Poiares Maduro
Miguel.Maduro@curia.eu.int

1 comentário:

Anónimo disse...

E daqui a 110 anos, quanto tempo é que dirão que vai faltar? ;-)