A política tem vivido, em Portugal, uma sequência de ciclos desgostantes e desgastantes.
Não vale de nada insinuar, com ar superior, que as massas ao desinteressar-se da política estão apenas a revelar a sua debilidade cultural e cívica que os trinta anos passados sobre a Revolução já não disfarçam.
Não, os responsáveis por esse “alheamento cívico” são principalmente os “agentes políticos”, o establishment cultural e jornalístico e, de modo geral, os que gravitam à volta das cadeiras (e orçamento) do poder.
As festividades dos 80 anos do Dr. Mário Soares juntaram num banquete a quase totalidade desse establishment e mostrataram como, apesar das guerras violentas em que se envolvem regularmente, os seus membros sabem reconhecer o essencial das suas solidariedades. O povo assistiu atónito ao desfile de figuras que julgava serem incompatíveis (aqueles 2000 notáveis que ocupam 90% do tempo opinativo das televisões e que estão sempre a ser nomeados para qualquer coisa).
O Dr. Mário Soares é o exemplo mais acabado de uma forma de fazer política que já se começa a tornar intolerável: o partidarismo como um clubismo, o “ser amigo do seu amigo”, a “leadalde” acima da verdade e do interesse público, uma lógica impiedosa de poder de grupo em que os princípios já não parecem ser o cimento aglutinador.
O Dr. Mário Soares não é o único a praticar estas artes mas é notável que os seus 80 anos não lhe tenham ensinado a moderar-se e a ver a relatividade e precaridade das “glórias bélicas” a que não consegue resistir.
E é por causa dessa lógica que os partidos principais se vêm alternando no poder, ciclicamente. Sempre que um alcança o voto maioritário do povo assume as rédeas da governação para ser de imediato sujeito aos tratos de polé da oposição.
Numa primeira fase, quando ainda subsistem algumas ideias mais arrojadas do programa eleitoral, a oposição trata de arregimentar todos os interesses e corporações que se sentem ameaçados por qualquer das propostas do governo.
Iniciam uma táctica que inclui barragens de artilharia na imprensa a cargo do batalhão dos comentadores de serviço, algumas chantagens económicas, a divulgação de meia dúzia de escândalos fiscais ou processuais da autoria dos ministros, tudo com o objectivo de paralisar o adversário.
Quando o efeito paralisante foi conseguido e o governo fica com o ar de já não se poder mexer em qualquer direcção inicia-se a segunda fase que consiste em glosar a inoperância dos ministros, as contradições detectadas nas suas declarações, e em geral trata-se da preparação do funeral político.
Uma vez feitas as eleições, sempre apresentadas como grandes viragens decisivas para o futuro do país, os partidos que foram imolados no governo do ciclo anterior passam ao papel de oposição e, dada a violência e irracionalidade com que foram tratados, sentem-se no direito de ser ainda mais demagógicos do que os seus adversários.
Como os adversários são sistematicamente diabolizados e as suas tentativas de realizar algo sempre apresentadas como absolutamente injustificadas e prejudiciais segue-se que cada novo governo começa, em regra, por destruir ou ignorar as obras do anterior. A intenção de destruir as decisões dos governos em funções inicia-se aliás ainda durante a fase de oposição e é prometida para o ciclo seguinte da “alternância” assegurando-se assim que os cidadãos não possam considerar “estável” qualquer legislação mesmo que regularmente aprovada e publicada.
Não é claro quando, nem como, a esquerda se deixou resvalar para esta desgraçada situação mas a “superioridade moral dos comunistas” ou a seriedade “laica e republicana” tendem a converter-se em fórmulas de que só os mais velhos se recordam ainda.
Hoje, mesmo à esquerda, impera o fulanismo, os “fait-divers”, os golpes de teatro mediáticos, os trocadilhos, a dramatização ou exagero das situações numa verdadeira versão tablóide da política.
A reacção de Ana Gomes à decisão de Sampaio de empossar Santana, a maior parte das declarações de Louçã sobre o caso Marcelo, o estilo de Bernardino Soares ao comentar as questões orçamentais, são apenas alguns exemplos em que a demagogia, a falta de sentido de Estado, e mesmo as graçolas de baixo estofo tornam a esquerda irreconhecível para aqueles que, como eu, sempre acreditaram que ela se distinguia pela nobreza e elevação quer dos propósitos quer dos comportamentos.
A história mostra que os comportamentos descritos levam à destruição da democracia. Tem que tocar algures um sino a rebate para que se verifique uma mudança radical de atitude por parte daqueles que querem preservar a liberdade.
É preciso acreditar que a dignidade dos comportamentos também acabará por fazer a diferença e “render” politicamente. Quando um jornalista rasteiro vem com uma pergunta rasteira, verdadeiramente tentadora para entalar o adversário mas irrelevante do ponto de vista do interesse público, é preciso recusar o engodo, reduzir a intriga às suas diminutas proporções, falar de outra coisa.
Só quando se mostrar coragem para rejeitar a chicana política, para perder as eleições se for esse o preço das verdades incómodas, para tirar o chapéu ao adversário quando as suas acções são positivas é que poderá começar um novo ciclo na política portuguesa.
Para isso faltará talvez encontrar uma alternativa para os partidos como base em que assenta a democracia. Os partidos, pela sua própria natureza, geram clubismo, cegueira sectária e distribuição de favores.
Não seria muito mais natural as pessoas associarem-se a causas e projectos, de acordo com as suas inclinações, do que filiarem-se em instituições com as quais nunca se identificam completamente. Quem, por exemplo, seja simultaneamente contra a liberalização do aborto e contra o pacote laboral não encontra nenhum partido com que se identificar.
Virá o dia, estamos certos, em que as pessoa serão militantes de causas e projectos e não de partidos. Em que os boletins de voto pedirão a cruzinha não em bandeiras partidárias mas sim em causas e projectos.