O meu avô dos olhos claros
era homem de longos silêncios
interrompidos por pragas
que eu, miúdo da cidade, não entendia
"ah codorniz, peixeira do mar"
O meu avô dos olhos claros
talvez uma semente que ficara
de alguma invasão francesa
contorcia um bigode arruivado
sobre dez réis de gente
O meu avô dos olhos claros
sacou uma dúzia de filhos
da pequena leira à volta da casa
onde a avó de tez cigana
estendia os panos de secar figos
O meu avô dos olhos claros
bebia o seu copito, de raiva,
contra uma pobreza que nem imaginamos
e resmungava antigos ditados
quando as centopeias minavam o pão
O meu avô dos olhos claros
levou-me à pequena eira
e deixou-me pisar as uvas na adega
mas acho que nunca o conheci
acho que nunca ninguém o conheceu
O meu avô dos olhos claros
acabou na prosaica Amadora
tolerado em casa de uma filha
e pedia esmola à porta da estação
para ter a sensação de estar vivo
O meu avô dos olhos claros
desapareceu no silêncio
tal como sempre viveu
com os olhos cada vez mais claros
do que viu e do que sofreu
O meu avô dos olhos claros
morreu há um ror de anos
nunca teve cinco minutos de fama
os filhos foram-se todos
e dos netos pouco resta
O meu avô dos olhos claros
visitou-me hoje, inesperadamente,
e eu soçobrei à sua tragédia vulgar
e senti a sua herança como nunca
agora que só eu o posso lembrar
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