quinta-feira, maio 26, 2016

A árvore dos desentupidores



A árvore dos desentupidores
Hoje passei no lote 14. As janelas do segundo direito continuam fechadas e os estores corridos até abaixo.
Foi quase sempre assim desde que ele morreu há seis anos. Com pequeno interregno em que lá morou uma simpatica família cheia de miúdos.
Cá em baixo, no jardim entre os prédios, os arbustos florescem apesar da incerteza primaveril e, entre eles, sobresaem as flores vermelhas da “árvore dos desentupidores”.
Foi ele que a plantou. Trazida de uma viagem, a ver a filha e os netos, à Califórnia.
O pequeno ajardinado adjacente à praceta era o seu feudo, onde reinava desde que trespassara a loja ainda rijo. Era um regresso à agricultura que nunca chegara a praticar. Ele que fugira da casa nas beiras, para a cidade, com meros 13 anos.
Creio que ele nunca chegou a saber que chamam califemo, àqueles arbustos cuja flor parece um escovilhão pronto a entrar pelo gargalo de uma qualquer garrafa a precisar de limpeza.
Tivemos alguns desacordos por causa disso; eu realmente não apreciava aquele exotismo. Ele, pelo contrário, deliciava-se com os elogios dos passantes e foi fazendo oferecimentos à vizinhança.
Ao fim de algum tempo já se viam, aqui e ali, novas “árvores dos desentupidores”, como eu lhes chamava, que descendiam da matriz importada, às escondidas, das costas do oceano Pacífico.
Então fui levado a olhar para aquele jardim como um legado do meu pai, uma coisa viva que ele deixou e que lhe vai sobreviver sabe-se lá quanto tempo.
Ele não era dado a especulações metafísicas mas eu gostava que ele, esteja onde estiver, pudesse ver as abelhas girando à volta das flores que plantou.
Fui o resto do caminho a olhar para os arbustos de uma outra maneira, com outra consideração. Cada um deles é afinal uma herança.
Que o pai de alguém deixou ali para aqueles que, como eu, agora passam.

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