quinta-feira, abril 24, 2008

O quotidiano em Bissau - 1969

Tem andado acesa na blogosfera a discussão sobre o significado da deserção e da participação na guerra colonial.
Em comentário recente feito no entre as brumas da memória verifiquei que me equivocara quanto à fonte das informações que obtinha em Bissau sobre o Maio de 68 (eu parti para Bissau como tenente fuzileiro no dia 1 de Maio de 68 e a minha mulher algures em Agosto de 1968).

Por causa disso folheei a correspondência dessa época e resolvi procurar respostas também em imagens do quotidiano na nossa modesta casa. As imagens são do princípio de 1969.



A Maria Rosa, que era professora no liceu, estava provavelmente a preparar uma aula na nossa "sala de estar". Em cima da mesa pode ver-se, para além de um maço de Marlboro, um Diário de Lisboa cuja manchete era "Nixon queria...". Sobre a cama ao fundo há mais jornais.
À direita pode ver-se a rudimentar instalação esterofonica e os discos.


As leituras antes de adormecer, à sombra de um engenhoso candeeiro que eu construíra com cabaças. O livro é o "Fim de Semana na Guatemala" do Miguel Angel Asturias.




Outra perspectiva do nosso quarto. O que parece ser um roupeiro, com uma frente de pano, era onde tinha o "laboratório" com que produzia fotografias.
A estante rasteira tinha os livros que, consegui identificar ampliando a fotografia, incluíam as peças do Brecht, "O Judeu" e a "Crónica dos Pobres Amantes".
Em cima do banco de madeira são visíveis alguns exemplares da "Vida Mundial".
Na parede à esquerda uma esteira suportava um conjunto de fotografias, uma espécie de altar ideológico. Lá podem ver-se referências "Bonny and Clyde", Che Guevara, a guerra do Vietname, e o Maio de 68 (com a famosa fotografia dos líderes abraçados em manifestação - ver adenda no fim do post).



Pensei que este documento podia ser interessante para se perceber várias coisas; como se vivia na Guiné no período 68/69, como se tentava manter o contacto com a cultura, quais eram os temas que mais tocavam jovens como nós e também o que, apesar de tudo, naquele contexto era tolerado mesmo a um oficial da marinha de guerra.


_______________________________

Adenda:




É esta a fotografia que figura na esteira em baixo à esquerda. Alain Geismar, Daniel Cohn-Bendit e Jacques Sauvageot desfilam em Paris.

4 comentários:

  1. Como éramos jovens por essa altura.
    É interessante que recordes o que lias e os livros que tinhas espalhado pela casa.
    Num post de Rui Bibiano em http://aterceiranoite.wordpress.com/2008/04/23/espartanos-e-hedonistas/
    São apresentados como alternativas de cultura diversos autores e artistas, parecendo que uns seriam para os militantes (os espartanos) e os outros para os escapistas (os hedonistas). Gostaria que lesses, pois parece que o autor anda completamente a navegar naquilo que líamos, escutávamos e víamos na época. Se tiver paciência para reunir a informação necessária gostaria de dar também a minha contribuição para aquilo que eram as preocupações de alguma juventude universitária alinhada à esquerda.
    Parece-me, no entanto, que o autor é francamente mais jovem do que nós e por isso tem outra perspectiva sobre a época

    ResponderEliminar
  2. Anónimo15:38

    Caro Jorge Nascimento Fernandes,
    Três pequenas «precisões»(o nome não conta...):
    - O texto que escrevi na Terceira Noite pode não ser claro, mas o que digo é precisamente que muitas pessoas combinavam os dois tipos de leituras e diversos modelos de utopia;
    - Sou historiador de profissão: há anos que trabalho, junto com mais alguns jovens historiadores, sobre estes tempos e este tipo de temática. A observação não é tanto de carácter memorialista, mas antes analítico (o que não retira valor á primeira, naturalmente);
    - Serei um pouco mais novo, de facto, mas não tanto assim, como já terá percebido nesta «altura do campeonato».
    Um abraço,
    Rui Bebiano

    ResponderEliminar
  3. Anónimo15:42

    Ao Fernando Penim Redondo peço desculpa por não me dirigir primeiro ele, como autor deste blogue.
    Agradeço a partilha de documentos tão pessoais, que nos fornece pistas e recordações. São importantes estes testemunhos, pois são coisas que não estão «escritas nos documentos» e que, por este motivo, muitos historiadores tendem a não tomar em consideração.
    Um abraço.

    ResponderEliminar
  4. Caro Rui, bem vindo ao DOTeCOMe.
    A Maria Rosa (minha mulher) também se formou em história na Univ. de Lisboa, precisamente no Verão de 68 antes de ir ter comigo à Guiné. Vocês são colegas portanto.

    Os reformados com uma situação económica confortável podem dar-se ao luxo de estudar o seu próprio passado. Neste caso tive que pedir às fotografias que me dessem os dados objectivos que a memória começa a recusar-me.

    Ainda não consegui convencer a Maria Rosa a proceder a uma análise detalhada da correspondência que trocámos durante meses, quase diariamente, em 1968, 1969 e 1970 que eu penso conterá, para além das questões íntimas, muita informação sobre essa época.

    Um dia lá chegaremos.

    ResponderEliminar