Revi "Sweeney Todd" há dias, no Teatro Aberto. Trata-se de uma história que pela sua complexidade ganha bastante em ser vista sem estar sujeito à ansiedade do suspense que atinge inevitavelmente a primeira vez. O belíssimo musical de Stephen Sondheim, na presente encenação de João Lourenço, vai manter-se em cena até ao fim de Dezembro.A história, que sob várias formas se converteu em mito urbano desde meados do século XIX, supostamente ocorreu por volta de 1800.
Opõe Todd, barbeiro que trabalha por conta própria, a dois representantes da burocracia judicial. O poder do estado é usurpado e exercido por estes contra Todd para, remetendo-o a um degredo injusto, se apropriarem sexualmente da sua mulher e da sua filha.
É portanto a impunidade desta casta de servidores do estado que desencadeia a revolta brutal de Sweeney Todd. Um tema moderno em certo sentido.Passa assim ao lado da visão mais comum sobre a luta de classes. Não há propriamente exploradores e explorados no sentido directamente económico do termo.
Impotente nas suas tentativas para castigar os agressores e enlouquecido pelo ódio, Todd decide massacrar indiscriminadamente qualquer homem que ponha o pescoço ao alcance da sua navalha. Essa produção constante de carne fresca excita o faro comercial da senhora Lovett, senhoria de Todd. Assim nasce uma florescente parceria empresarial que usa a matéria-prima criada na barbearia do primeiro andar para encher as empadas da senhora Lovett no rés-do-chão. É o período mais feliz e divertido do espectáculo.
Os espectadores dão por si a simpatizar não só com um "serial killer", que Mário Redondo serve de forma emocionante ao colocar a voz num registo sombrio, mas também com uma actividade hoteleira que mereceria, sem qualquer dúvida, ser visitada pelos piquetes inspectivos da ASAE. Somos portanto obrigados a interrogar-nos sobre as razões dessa simpatia.
Nós sabemos que não se trata de verdadeiros crimes, apenas a sua representação, e portanto a simpatia por Todd demonstra que se obteve neste ponto um efeito de distanciação. As atrocidades cometidas contra "cidadãos inocentes", feitas desta forma distanciada, poderão também introduzir a ideia de que ninguém é inocente quando a violência da burocracia campeia. Tal violência devia ser por todos denunciada e contestada.
A simpatia pelo negócio da senhora Lovett, suscitada por "árias" engraçadíssimas e pela excelente representação de Ana Ester Neves, radica talvez no puro gozo de ver nascer, ao vivo, uma inovação comercial. Inovar, inovar sempre, é o grande mote dos tempos de hoje. A senhora Lovett mostra que tal receita pode ter muito que se lhe diga mesmo quando as vendas disparam, como é o caso.
A cenografia introduz um "mundo" que é tanto estrutura em ferro como labirinto. A movimentação mecânica remete adequadamente para a época retratada.
O nível geral dos cantores é excelente e inclui o consagrado Carlos Guilherme bem como Marco Alves dos Santos, Sílvia Filipe, Carla Simões, José Corvelo e Henrique Feist, sob a direcção do maetro João Paulo Santos que dispensa apresentações.
O meu único reparo a este espectáculo é o subaproveitamento dos belos coros por falta de amplificação das vozes.
Quanto ao mais recomendo vivamente.
No Teatro Aberto mostra-se, musicalmente, como o ódio indiscriminado às pessoas e à sociedade não passa afinal de um processo de auto-destruição.
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